Jornada Pelo Deserto de Cinzas

Oh Tomorrow I’m Alone ...

Em uma estrada de asfalto repleto de rachaduras, que se estende até se perder no horizonte, o homem de capa preta caminha lentamente. Usa um chapéu também preto, mais para esconder o próprio rosto do que para se proteger do Sol, que há dias não aparece entre as nuvens escuras. De ambos os lados da estrada, apenas poeira e árvores queimadas enfeitam o cenário desolador. Não há pássaros no céu, nem qualquer sinal de vida em qualquer direção, apenas o homem de capa preta.

Faz muito frio e venta bastante, mas o homem parece alheio a tais fenômenos. Seu andar, apesar de um pouco manco, é constante e determinado. Seu rosto se mantém abaixado e oculto pela sombra do chapéu, como se não ousasse olhar para mais que um metro a sua frente. Aparentemente incansável, continua a caminhada por um dia inteiro, até que o Sol acinzentado pelas nuvens se posiciona exatamente onde a estrada termina, centenas de quilômetros à frente. O homem então para, tira de um dos grandes bolsos internos de sua capa um pano cuidadosamente dobrado, uma garrafa de água e um pedaço de pão velho. Sem sair da estrada, estende o pano no chão exatamente à sua frente e senta-se. Em nenhum momento ergue a cabeça, apenas olha o pão e a água em cada uma de suas mãos por um instante e começa a comer sem pressa.

Quando o dia termina, a escuridão é completa. Na há Lua ou estrelas, nem qualquer sinal de luz em qualquer direção. O homem de capa preta não faz uma fogueira – não só porque o vento intenso não permite, mas também por apreciar as trevas. Deita-se de costas, olhando para o céu agora invisível, e dorme um sono sem sonhos.

Acorda aos primeiros raios de Sol pálidos. Levanta-se, bebe um pouco de água, dobra novamente o pano com bastante cuidado e guarda-o em sua capa. Continua sua caminhada, sem qualquer sinal de cansaço, por incontáveis horas, até que ocorre algo completamente estranho, que destoa de tudo naquele lugar.

De início, parece ser apenas um som diferente do vento, como um assobio ou um uivo, mas logo se percebe o som de uma risada infantil, vinda de todos os lados. O homem de capa preta para de súbito, não move um único músculo, apenas escuta. A risada fica mais alta e estridente, distorcida, quase sobrenatural. O vento passa a soprar mais forte, agitando a capa e quase levando o chapéu do homem. Lembranças o assolam. Lugares e eventos antigos são revisitados. Memórias, há muito enterradas, voltam à vida. O homem chora. O vento para. O tempo para. Tudo para. Apenas uma lágrima solitária escorre pelo rosto repentinamente exausto. O rosto de alguém que por muito tempo carregou o peso do mundo sobre seus ombros, o peso de uma tristeza imensurável, de uma dor nunca abrandada.

Sob o silêncio absoluto, o homem cede. Relembra o dia em que perdera seu único filho, lentamente retirado de seus braços por uma terrível doença. Lembra-se daqueles pequenos olhos, sempre tão vivos e alegres, aos poucos perdendo o brilho e se fechando; e daquelas mãozinhas curiosas perdendo a força e caindo sobre a cama do hospital, imóveis. A respiração fraca delicadamente sumindo. O calor se esvaindo, deixando apenas um corpo inútil e frio sobre os lençóis. O homem o abraçou o mais forte que pôde, tentando em vão reaquecê-lo, enquanto os médicos e enfermeiros apenas olhavam a cena, derrotados.

O homem de capa preta cai de joelhos ao chão, sem forças para dar nem mais um passo, e é nesse momento que um leve sopro do vento leva seu chapéu para longe. Surpreso, ele levanta o rosto e, pela primeira vez, olha a sua frente. Não há mais estrada, não há mais aonde ir. Olha então para trás e percebe que também não há nada além de um deserto cinzento às suas costas. Naquela imensidão, o homem se sente pequeno.

As nuvens começam a se dissipar no céu, permitindo que os raios de Sol voltem a brilhar intensamente. Sentindo o calor em sua pele, o homem de capa preta percebe que suas lágrimas começam a secar, e sente-se reconfortado de algum modo inexplicável. Levanta-se e olha ao redor, à procura de algo, mas sem saber o quê. E é então que avista um pequeno vulto caminhando em sua direção, à distância. Sem pensar duas vezes, corre em direção ao seu filho.

Enquanto corre, uma leve brisa percorre carinhosamente seu corpo, seu rosto, seus cabelos. E tudo se torna claro para ele. O homem despe-se de sua capa, que é arremessada em direção ao céu e logo desaparece. Chegando ao seu filho, ajoelha-se e observa por alguns instantes o sorriso, os olhos, o corpo franzino e frágil do garoto. Abraça-o com toda a força, sentindo o calor e a vida que pensara ter perdido para sempre.

O homem e seu filho viram pó, como tudo o que os cerca. Já não são mais um, agora fazem parte de tudo.

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